A comida afetiva é muito mais do que apenas um prato saboroso; ela é uma ponte direta para as nossas emoções, lembranças e um dos mais poderosos mecanismos de conforto. É aquele bolo de chocolate da vovó que nos transporta para tardes de domingo ensolaradas, o macarrão da mãe que nos acalma em um dia difícil ou o café com leite do pai que nos dá energia para enfrentar o dia.
Dias atrás, assisti a um filme brasileiro chamado A Oeste do Fim do Mundo. Em certo momento, um dos personagem diz que a última coisa da pátria que se esquece é a língua. Fiquei pensando que, para mim, o que resiste mais é o paladar. São os sabores que nos mantêm ligados ao chão de onde viemos — aqueles temperos que carregam histórias e sussurram lembranças. Há comidas que não são apenas comidas: são chaves secretas que abrem portas da infância, despertam cheiros de fogão, vozes familiares, mesas cheias de afeto. Cada sabor é um reencontro, e nele a saudade se aconchega, acendendo um calor manso que nos embala e, ao mesmo tempo, nos faz sentir a distância de tudo o que amamos.

Comida afetiva é um carinho que começa na boca e vai direto para a alma. É aroma que abraça a casa inteira, como o perfume doce da cuca de banana que minha mãe preparava com calma, enquanto eu esperava o momento de levar à padaria para assar. Lá, eles nunca cobravam — havia uma delicadeza no ar, um pacto silencioso de gentileza que valia mais do que qualquer moeda. Até hoje não sei por que minha mãe não usava o forno de casa, e talvez nem importe: o que ficou foi o ritual, o caminho até a padaria, o cheiro que me seguia, a sensação de que o mundo, naquela hora, era simples e bom.

Quando a cuca de banana voltava da padaria, era como se o lar inteiro respirasse alívio. O chão brilhava de cera, e o perfume doce da massa recém-assada se misturava ao cheiro de casa limpa, criando uma memória que ainda hoje me aperta o peito. Era sempre num sábado à tarde — ritual silencioso — quando estendíamos a toalha xadrez sobre a mesa e o café, coado no pano gasto de tanto uso, perfumava o ar. Havia algo de sagrado naquela cena simples: nossas mãos pequenas, nossa fome imensa, a ternura que cabia num pedaço de cuca.
No domingo, a casa amanhecia em festa. Da cozinha vinham os primeiros sinais: cheiro de carne dourando na panela, cebola refogando, batatas esperando o ponto certo. Às vezes eram almôndegas ao sugo, outras, galinha ensopada — tudo temperado com paciência no dia anterior. A maionese caseira, o macarrão aberto no rolo, e a gasosa de groselha que o vizinho vendia completavam o banquete. Domingo era dia de mesa farta, de risos e histórias, de amor servido em travessas, até que o coração ficasse tão cheio quanto o prato.
Durante a semana, a mesa era simples: polenta. Na casa de descendentes de italianos, polenta é como arroz — presença constante, quase sagrada. Cozinhava-se no tacho, despejava-se sobre a tábua redonda de madeira, e o fio de linha cortava as fatias como quem parte um pedaço de afeto. No dia seguinte, as sobras ganhavam nova vida: douravam na chapa do fogão à lenha ou chiavam na frigideira até ficarem crocantes. E, quando a noite pedia algo doce, vinha ela — a polenta com leite quente, servida no meu pratinho fundo, esmaltado, que guardo até hoje. Cada colherada me devolve ao passado e traz aconchego para essa alma adulta, mas ainda inquieta. A farinha vinha fina, de Urussanga, e ainda hoje faço questão de buscá-la lá — como se cada grão fosse um abraço da minha terra natal.

Quando ficávamos doentes, havia um remédio infalível: canja. Até hoje, sempre que adoeço, sinto falta da minha mãe entrando no quarto com aquela tigela fumegante. Curava qualquer mal do corpo e da alma..
Havia também a minestra da Dona Marta, nossa vizinha, que parecia adivinhar quando eu estava com fome. Ela mandava me chamar e eu corria, feliz. Antes de partir, teve a delicadeza de me ensinar os segredos daquele feijão encorpado. Não me ensinou apenas uma receita, mas uma forma de amor: lembrar de quem gosta do prato e chamar para partilhar. Carrego esse gesto comigo e, sempre que faço a minestra, agradeço silenciosamente à minha vizinha querida.
Lembrei agora do peixe frito que meu pai fazia na casa de praia. Era papa-terra, peixe miúdo de carne branca. Ele acordava cedo, ia até a beira-mar e comprava dos pescadores. Me ensinou a lição que repito até hoje: óleo não se economiza na hora de fritar peixe — tem de ser abundante e bem quente. Ao ouvir a música do vídeo abaixo, é como se o visse ali, cantarolando, e meu coração se afoga em ternura.
Meu pai fritando peixe e minha mãe ajudando (1989) – Receita do peixe frito
Ah, a lembrança do Ki-Suco, um toque de magia doce que coloria nossos lábios e nos presenteava com um bigodinho açucarado, efêmero, mas tão real! A doçura daquele suco se pagava com uma dor de barriga danada que logo passava. E nesse cenário, aparecia a figura de minha tia Vanda, a amada e terna tia de Araranguá, sempre tão querida, fazia o Ki-Suco para nós no almoço.
Nossas casas, naquela época, guardavam um segredo verde e perfumado: o pé de limão no quintal. Ele servia para temperar e, também, para fazer a limonada. Feita de pressa e amor, descia para a jarra com sua alma inteira, sementes e tudo, abraçado pela água gelada e uma generosidade de açúcar, sem pudor de peneirar. E se o limão faltasse, havia a alternativa velada, o vinho. Calma…o vinho era reservado somente para os adultos. Era uma mistura doce de vinho, água e açúcar, um batismo infantil que, sob o manto da inocência, nunca nos levou ao desvio.
De sobremesa, tinha banana caramelada com suspiro ou pudim de leite. O meu, confesso, fica melhor que o da minha mãe — o caramelo dela sempre passava do ponto. Mas nunca consegui reproduzir o pão caseiro dela. Quando dá errado, vai para o lixo; quando dá certo, meu marido olha, e, por compaixão, não diz nada, só sorri. Outras versões do pão caseiro simples até que me arrisco, mas nunca vai ser o pão da Dona Lili, aquele que inebriava a casa de um aroma que conversava intimamente com minha alma faminta — não precisava de nada, puro já bastava.
Quando a comida era pouca, minha mãe improvisava: pizza de liquidificador. Juntava tudo que sobrava na geladeira, cobria a massa e assava naquela panela baixa e redonda, que nunca mais vi. Era assada no fogão e meu pai, gozador, chamava de “mil e uma noites”. Até hoje faço essa pizza para o jantar, mas também gosto dela fria, no café da tarde.
O cozido, aprendi com meu cunhado René — e tenho certeza de que será o cozido a memória que minha filha vai guardar de mim. Meu filho, no entanto, aposta que será o pirão do cozido. Talvez ele lembre também do croquete de galinha que aprendi com tia Isaura, um pedacinho de amor que ela me deixou em forma de receita.
As pessoas que amamos sempre levam um pedacinho de nós. Os sabores também são pontes para quem está longe. Lembro do meu filho, que hoje mora na Austrália, sempre que provo o bolo de chocolate que ele fazia para vender na escola — o melhor das galáxias, ever!
Hummm!!! Já ia me esquecendo, o tão amado e agora condenado por esta vida fitness e sem sabor: o bolinho de chuva. Frito em bastante óleo e salpicado com canela e muito açúcar. A azia vinha depois, mas era parte da festa.
Nos aniversários, nada de tortas elaboradas: era o famoso bolo camadas feito em casa, com muita manteiga, ovos e suspiro, coberto de confeitos duros que mais encantavam os olhos da criançada do que o paladar. Cada mordida tinha um sabor diferente, e era esse o encanto.
Hoje entendo o que chamam de paladar infantil. Doces que eu rejeitava na infância, hoje, são ternura para meu paladar — mamão verde, abóbora com coco, compota de figo verde e doce de abóbora na cal. O tempo nos treina para transformar nosso paladar e aguçar os aromas e os sabores da nossa memória afetiva.
Na Páscoa, minha mãe sempre fazia paçoca. Minha irmã resgatou a receita e me ensinou. E, quando a noite findava, tinha um mingau cremoso de maisena, com muita canela por cima, para acalmar minha alma inquieta de criança rebelde e esperar o sono chegar.
Comida afetiva é assim, é lembrança, é um pouquinho do nosso amor que deixamos em forma de sabor. É preciso servir sempre o nosso melhor, nem que seja somente pelo humor, como o bolo que não cresceu ou o frango que queimou, mas foi o melhor que você poderia ter dado: seu tempo. É uma experiência multissensorial que nos conecta com nossas emoções mais profundas. Ao saborear um prato especial, estamos não apenas alimentando o corpo, mas também nutrindo a alma.
Uau!
Volto e me deparo com esse texto gostoso, cheio de maravilhosas lembranças suas.
Infelizmente minha mãe sempre foi adépta do trivial, por isso não tenho essas lembranças de sabor da infância.
Mas, estou deixando no meu filho e essas receitas deram água na boca.
Olha, cá entre nós, minha mãe não era nenhum primor na cozinha, acho que hoje em dia eu cozinho melhor que ela, mas mesmo assim o que ela fazia me deixou boas lembranças.