Comida afetiva: resgate de boas sensações ❤

Há alguns dias, eu estava assistindo a um filme brasileiro chamado “A Oeste do Fim do Mundo”. O personagem dizia que a última coisa da pátria que se esquece é a língua. Eu acredito que a última coisa que nos esquecemos de nossa terra natal é o paladar. Aquela comida afetiva que vem carregada de lembranças. Algumas delas nos transportam para a infância, alcançam nossas almas e esquentam nossos corações saudosos.

Comida afetiva

Comida afetiva é assim, é acalanto no nosso paladar e perfume que invade a casa, como o cheiro da cuca de banana que minha mãe fazia e mandava eu levar na padaria para eles assarem. Eles nunca cobravam. Naquela época, gentilezas valiam muito mais que dinheiro. Nunca soube por que minha mãe não assava as cucas no forno da nossa casa.

cuca de banana
Receita de cuca de banana

Quando a cuca chegava da padaria, a casa estava limpa e o cheiro de cera e cuca recém-assada invadiam o lar. Esses aromas me dão um aperto no peito de saudades e nunca vão me abandonar. Isso acontecia aos sábados à tarde, quando arrumávamos a mesa com toalha xadrez para o café. O café era feito em coador de pano. Era pura ternura para a nossa fome feroz de criança.

Aos domingos, a casa se enchia de aromas vindos do fogão. Era um dia de comida especial, carne assada na panela com muitas batatas, ou almôndegas ao sugo ou, ainda, galinha ensopada, tudo caprichosamente temperado no dia anterior. Maionese e macarrão caseiro não podiam faltar. Ah, é claro, domingo era dia de gasosa, um refrigerante de groselha que nosso vizinho fazia. Era dia de mesa farta, de conversas e de amor.

Durante a semana, comíamos muita polenta. Em casa de descendentes de italianos, polenta é como arroz. Ela era cozida em um tacho, servida em uma tábua de madeira redonda e as fatias eram cortadas com fio de linha. No dia seguinte, as sobras eram assadas na chapa do fogão à lenha ou eram fritas. A sobremesa podia ser polenta com leite bem quente. Até hoje, tenho um pratinho fundo, esmaltado, para comer essa delícia. É a força da energia que me guia a outro tempo e dá aconchego ao meu espírito adulto, mas ainda inquieto. A polenta era feita com uma farinha de milho muito fina. Atualmente, ainda mando buscá-la em Urussanga (SC), minha terra natal.

Quando ficávamos doentes, tínhamos direito a uma canja. Sempre que adoeço tenho saudades de minha mãe trazendo uma canja bem quentinha para mim. Curava qualquer mal do corpo e da alma.

Nossa vizinha fazia uma “minestra” (sopa de feijão) deliciosa. Ela mandava me chamar porque sabia que eu gostava. Antes de morrer, Dona Marta me ensinou todos os segredinhos da “minestra”. Aprendi com ela, além da receita, gestos de gentilezas que levo para a vida, como lembrar e convidar um amigo que gosta do prato que estou fazendo. Carrego comigo um grande carinho por nossa querida vizinha e agradeço a ela cada vez que faço esse prato.

Lembrei agora e salivei com o peixe frito que meu pai fazia na nossa casa de praia. Era papa-terra. Um peixe pequeno de carne branca. Meu pai acordava cedo e ia até a praia comprar com os pescadores. Também me ensinou que não se economiza óleo para fritar o peixe. Tem de ser bastante e bem quente. Quando vejo o vídeo abaixo, me afogo em lembranças com uma saudade cheia de ternura. A música do vídeo, ele cantarolava para gente.

Meu pai fritando peixe e minha mãe ajudando (1989) – Receita do peixe frito

Quem lembra do Ki-Suco? Era uma delícia e fazia bigodinho. Depois dava uma dor de barriga danada. Ah! que saudade da minha tia Vanda, lá de Araranguá, sempre tão querida, ela fazia esse Ki-Suco na hora do almoço. Naquela época, todos tinham um pé de limão no quintal de casa. Servia para temperar e, também, para fazer suco. Nem se peneirava, ia para jarra com semente e tudo, água gelada e muito açúcar. Ou, na falta do suco de limão, a gente tomava vinho. Calma…o vinho era somente para os adultos. Nós, crianças, tomávamos uma mistura de vinho com água e açúcar. Não viramos alcoólatras, mas acredito que hoje em dia não faríamos mais isso.

De sobremesa, lembro-me da banana caramelada com suspiro e do pudim de leite. Confesso que o meu é melhor que o da minha mãe. O pudim dela sempre ficava com o caramelo queimado demais e amargava. Agora, algo que nunca consegui fazer melhor que o dela é o pão caseiro. E olha que dou o melhor de mim. Às vezes, levo um pouco de sorte, outras o pão vai para o lixo. Meu marido olha, e, por compaixão, não diz nada, só ri. Outras versões do pão caseiro simples até que me arrisco, mas nunca vai ser o pão da Dona Lili, aquele que inebriava a casa de um aroma que conversava intimamente com minha alma faminta. Nem precisava nada por cima, puro já era uma delícia.

Quando não havia comida suficiente para o jantar, minha mãe fazia pizza de liquidificador. Juntava todas as sobras que estavam na geladeira e cobria a massa. Meu pai, como sempre um gozador, chamava de “mil e uma noites”. Ela colocava em uma panela baixa, redonda, do tamanho das pizzas atuais, mas com uma tampa e assava na boca do fogo. Nunca mais vi essa panela, mas a pizza de liquidificador, que ainda faço, é uma ótima opção para o jantar. Só que eu prefiro fria, no café da tarde.

Aprendi a fazer cozido com meu cunhado René, e acredito que essa será a comida afetiva que vai fazer minha filha lembrar de mim para sempre. Meu filho disse que é o pirão do cozido, mas acredito que ele vai lembrar também do croquete de galinha que tia Isaura me ensinou e eu faço igualzinho ao dela. Foi um pedacinho de carinho que essa tia, que eu tanto amava, me deixou em forma de receita.

As pessoas que amamos sempre levam um pedacinho de nós. Muitas vezes, o sabor e o cheiro da comida nos mantêm próximos daquele que está longe. Eu sempre me lembro do meu filho, que agora mora na Austrália, quando me delicio com o bolo de chocolate que ele fazia para vender na escola. Melhor bolo de chocolate das galáxias, ever!

Hummm!!!  Já ia me esquecendo, o tão amado e agora condenado por esta vida fitness e sem sabor: o bolinho de chuva. Frito em bastante óleo e salpicado com canela e muito açúcar. A azia a gente resolve depois.

Nos nossos aniversários não havia tortas. Era bolo de várias camadas, feito em casa, com muita manteiga e ovos. Cada pedaço deixava um sabor diferente na boca. Coberto com suspiro e confeitos coloridos que quase quebravam nossos dentes, mas que serviam apenas para encher os olhos da criançada de desejos.

Agora entendo quando dizem que alguém tem paladar infantil. Minha mãe fazia alguns doces que eu não gostava e, hoje, são ternura para meu paladar, como doce de mamão verde, de abóbora com coco, compota de figo verde e abóbora na cal. O tempo nos treina para transformar nosso paladar e aguçar os aromas e os sabores da nossa memória afetiva.

Na Páscoa, minha mãe sempre fazia paçoca. Minha irmã resgatou a receita e me ensinou. E, quando a noite findava, tinha um mingau cremoso de maisena, com muita canela por cima, para acalmar minha alma inquieta de criança rebelde e esperar o sono chegar.

Comida afetiva é assim, é lembrança, é um pouquinho do nosso amor que deixamos em forma de sabor. É preciso servir sempre o nosso melhor, nem que seja somente pelo humor, como o bolo que não cresceu ou o frango que queimou, mas foi o melhor que você poderia ter dado: seu tempo.

E você tem alguma comida afetiva para me contar?

Este post tem 2 comentários

  1. Mari

    Uau!
    Volto e me deparo com esse texto gostoso, cheio de maravilhosas lembranças suas.
    Infelizmente minha mãe sempre foi adépta do trivial, por isso não tenho essas lembranças de sabor da infância.
    Mas, estou deixando no meu filho e essas receitas deram água na boca.

    1. Olha, cá entre nós, minha mãe não era nenhum primor na cozinha, acho que hoje em dia eu cozinho melhor que ela, mas mesmo assim o que ela fazia me deixou boas lembranças.

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